"Eu sou responsável....
Quando qualquer um, seja onde for, estender a mão pedindo ajuda, quero que a mão de A.A. esteja sempre ali. E por isto: eu sou responsável."

Fundamentos do Programa de Recuperação de A.A.

Fundamentos do Programa de Recuperação de A.A.


Por Dr. LAÍS MARQUES DA SILVA

 

Palestra proferida no 59º Congresso da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

 

26 a 29 de setembro de 2004.

 

Iniciarei esta apresentação valendo-me de uma importante afirmativa feita por George Vaillant no seu livro, A História Natural do Alcoolismo. Ele diz que é preciso aceitar o paradoxo e admitir que podemos colocar o alcoolismo no modelo médico, mas que a sua etiologia e tratamento são largamente sociais. E acrescenta ainda que talvez não haja na Medicina moderna nenhum outro caso em que a sociologia contribua tanto para o entendimento daquilo que é chamado de alcoolismo.

 

Por outro lado, Klaus Makela afirma que “mudanças comportamentais radicais e duradouras geralmente também envolvem uma mudança existencial e a reestruturação do ”self”. E, deste ponto de vista, Alcoólicos Anônimos é uma interessante saída do alcoolismo”.

 

Trabalhos de Vaillant

 

George Vaillant estudou 660 casos de alcoolismo e acompanhou esses pacientes por 40 anos, de 1940 a 1980. Ou seja, realizou um importante e significativo estudo longitudinal, talvez o mais completo e mais longo dos que até hoje foram feitos. A importância desse enfoque é posta em destaque pelo fato de que o corte transversal exibe o quadro de um momento, mas não mostra como se chegou a ele nem o que aconteceu a partir dele. Num estudo longitudinal é que se delineia o contorno da história natural de uma doença.

 

Correlação

 

O foco principal do referido trabalho é voltado para um minucioso estudo de correlação entre os modelos médico e social do alcoolismo. Nesse estudo, procura-se avaliar em que medida, em determinados grupos de fenômenos ou a partir de diferentes enfoques de um mesmo fenômeno, ocorrem pontos comuns,  ligações entre as suas características que sejam estatisticamente significativas. A partir desse estudo, concluiu Vaillant que os médicos e os sociólogos estudavam o mesmo fenômeno, o alcoolismo. Falavam do mesmo fenômeno a partir de enfoques inteiramente distintos e isso é tão importante que, observando os critérios usados para o diagnóstico do alcoolismo, vemos que são adotados parâmetros tanto de caráter médico quanto social.

 

Olhando a partir de uma perspectiva mais adequada, volto a apresentar as palavras de George Vaillant que definem o foco, que a meu ver é o mais adequado diante da experiência que acumulei ao longo de muitos anos de prática médica e dos quase 34 anos de convivência estreita e contínua com os membros da comunidade de Alcoólicos Anônimos. Repetindo, temos que aceitar o paradoxo e admitir que podemos colocar o alcoolismo no modelo médico, mas a etiologia e o tratamento são largamente sociais. Nós, do mundo científico, racionalistas e cartesianos, não gostamos do paradoxo. A palavra paradoxo traz a conotação de imprecisão, de coisa de compreensão difícil, de complexidade, de coisa contraditória, mas uma coisa só é verdadeira quando contém o para-doxo.

 

Desconhecimento

 

Apesar de o alcoolismo ser uma desordem de grande poder destrutivo, que segundo o mesmo autor afeta de 3 a 10% dos americanos do norte, ser respon-sável por 25% das internações em hospitais gerais e de ter papel importante nas quatro maiores causas de morte entre homens de 20 a 40 anos de idade: suicídio, homicídio, acidentes e cirrose hepática, além de comprometer seriamente os familiares e amigos dos alcoólicos, a falta de conhecimento acerca do que é o alcoolismo é assombrosa.

 

Fatos

 

O que consideramos até o momento nos mostra que o melhor caminho a seguir no conhecimento do fenômeno Alcoólico Anônimos é o da observação pura e simples de fatos reais e de fácil constatação.

 

Breve histórico

 

Assim, temos que a Irmandade de Alcoólicos Anônimos surgiu em 10 de junho de 1935 nos Estados Unidos da América, ou seja, há 69 anos. Ao longo de todo esse intervalo de tempo, cresceu de forma contínua e consistente. Ou seja, o crescimento não teve um contorno senoidal, ora para cima ora para baixo, e is-so é muito importante para apreciar a consistência e o vigor desta forma de as-sociação humana. É importante acrescentar que poucos são os fenômenos soci-ais ou mesmo instituições que mostraram uma tal consistência e longevidade. Por outro lado, difundiu-se para quase todos os países do mundo e aqui vale ressaltar que ultrapassou fronteiras não só físicas, mas sobretudo sociais: lingüísticos, culturais, religiosos, étnicos, etc. Isto é, alcançou seres humanos de todas as raças, de todas as religiões e de muitas e diferentes culturas.

 

Num primeiro momento, irradiou-se por todo os Estados Unidos. Num segundo, alcançou o norte da Europa e se difundiu por países anglo saxônicos e de cultura predominantemente protestante. Depois, chegou ao centro e ao sul do continente europeu, ou seja, a países de cultura predominantemente católica. A se-guir, alcançou a América Latina, a África e os países do leste europeu. Numa terceira onda, chegou aos países do leste asiático, podendo-se afirmar que Alcoólicos Anônimos está se consolidando como o que, em sociologia, se conhece como sendo um fenômeno mundial, e este é um fato notável.

 

No Brasil, o primeiro grupo surgiu em 5 de setembro de 1945 e, a partir dos anos 60, a Irmandade de A.A. tem crescido num ritmo intenso, de tal forma que hoje existem cerca de 6.000 grupos com aproximadamente 180.000 membros em recuperação.

 

Fazendo uma imagem simples, podemos dizer que em 1935 eram apenas dois os membros de Alcoólicos Anônimos e que hoje são dois, milhões, de membros espalhados por quase todos os países do mundo.

 

Como é A.A.

 

Ao contrário dos movimentos sociais de longa duração, que vão lentamente pas-sando de um início freqüentemente carismático e vão se tornando burocráticos e profissionais ao longo do tempo, isso não aconteceu com a Irmandade de Alcoólicos Anônimos. O A.A. não está sujeito à lei de ferro de uma oligarquia, não existindo em A.A. uma estrutura de poder e nem um código disciplinar. A Irmandade não possui bens, a não ser o que é estritamente necessário para o seu funcionamento, ou seja, apenas alguns bens móveis e nenhum imóvel.

 

A.A. funciona sobre uma estrutura celular segmentada, que é uma forma de organização muito eficiente adotada nas sociedades modernas, de modo que todos os grupos são autônomos e economicamente independentes. Eles crescem, morrem, proliferam, diminuem, se dividem e se fundem espontaneamente, por si mesmos. Os grupos são sustentados através das contribuições voluntárias dos seus membros e pelo resultado da venda de literatura própria. Por outro lado, a estrutura celular não é amorfa, sendo que as células se juntam para formar uma complexa rede com a clara característica de ser uma rede social.

 

A estrutura celular, em grupos, facilita a tarefa de alcançar diferentes segmentos populacionais de uma sociedade além de oferecer uma grande variedade de grupos para que o recém chegado possa livremente escolher, de modo a encontrar um que se adapte à sua personalidade, ideologia e condição social. Por outro lado, esta estrutura permite que formas mal adaptadas desapareçam sem colocar a Irmandade, como um todo, em risco. As decisões são tomadas mais por consenso do que por votação, o que tende a prevenir a divisão em frações. De outra forma, a unidade é reforçada pelo sistema de rotação daqueles que estão em serviço, no desempenho de algum encargo. Não há cargos e tão somente encargos, ou seja, apenas responsabilidades na execução de alguma determinada tarefa, mas sem qualquer uso de poder. Dentro da sua estrutura não hierárquica e não burocrática, as lideranças não se apóiam na posição que um membro possa ter na estrutura formal da sociedade. O prestígio pessoal depende da sabedoria e da experiência de vida de cada um, além do trabalho realizado com outros alcoólicos.

 

Organização policéfala

 

O fato de não aceitar ajuda econômica externa, torna os grupos autônomos e é a partir dessa condição que eles se constituem no local primário de tomada de decisões. Por outro lado, em razão do fato de não terem que assumir posição em assuntos externos ao movimento e em questões ligadas ao cuidado com os alcoólicos, fica diminuída a necessidade de tomada de decisões.

 

Outra característica muito importante é que A.A. tem uma organização policéfala, não existindo uma estrutura central de tomada de decisões. Vale destacar que a estrutura policéfala evita as disfunções causadas pelo envelhecimento das lideranças, pela ossificação das estruturas e as causadas por alguma conduta inadequada.

 

Auto gestão

 

Uma conferência é realizada anualmente nos países em que o A.A. está pre-sente e nela todos os grupos de um determinado país são representados constituindo-se essas conferências naquilo que podemos entender como sendo um aperfeiçoado e eficiente sistema de auto gestão. No decurso das conferências, são identificadas soluções para os problemas encontrados ao longo de um ano e traçadas orientações para mais um período de igual duração, além de outras providências, sendo que, desse grande encontro resultam apenas sugestões que são passadas para todos os grupos.

 

Em princípio, Alcoólicos Anônimos não oferece tratamento.É um movimento de ajuda mútua, não existindo uma relação profissional/paciente, não obstante existir fora de A.A. um modelo de tratamento realizado por profissionais e inspirado ou orientado para o programa de recuperação de A.A..

 

Um lugar de destaque fica para o Programa de Recuperação, constituído pelos Doze Passos de A.A.. Os Doze Passos são, literalmente, um programa. Não se trata de um código de conduta, mas sim de tarefas e problemas a serem resolvidos. Os três primeiros são passos de decisão e neles os alcoólicos admitem o alcoolismo e colocam a recuperação nas mãos de um Poder Superior. Os de número 4 a 9 são voltados para uma mudança da relação com a própria vi-da e com os outros são chamados de passos de ação e os de 10 a 12 são de continuação e manutenção.

 

Livro Grande

 

A primeira literatura impressa de A.A. foi o chamado Livro Grande que apresentou os Doze Passos e é um resumo do que os primeiros membros de A.A. fize-ram. Os Doze Passos são colocados como um programa sugerido de recuperação. A maioria das suas páginas é dedicada a histórias individuais de recuperação, de tal forma que o aprendizado em A.A. se torna baseado no exemplo.

 

A.A. se apóia numa mistura de tradições escritas e orais de modo que possui textos básicos altamente reverenciados que se constituem num modelo para os grupos e para os seus membros, sendo que a tradição oral está associada à ênfase que se dá à experiência individual dos membros. As tradições, escritas e orais, são o fruto da experiência individual e, coletivamente, dos grupos.

 

Grupos menos rígidos

 

A.A. não formula regras de conduta mas, pela transmissão oral, são passados modos de comportamento e maneiras de falar que vão sendo aprendidas ao longo do tempo pelo exemplo e pela experiência diária. Resumindo, aprendem-se virtudes e sabedoria a partir da experiência, embora não existam regras de boa conduta, do que resulta uma profunda mudança comportamental ao longo do tempo. Dessa forma, há muito de cultural, e assim sendo, são criadas condições para a existência do espaço necessário para o surgimento de alguma va-riação no sistema de crenças que permite o aparecimento de variantes extremamente doutrinárias e de outras formas mais frouxas, abertas e liberais. Por outro lado, os recém chegados são usualmente orientados para que visitem diferentes grupos a fim de encontrarem um que se adapte melhor ao seu modo de ser. Dentro desta mesma linha e tendo a recuperação individual como objetivo principal, o membro de A.A. continua com a possibilidade de, a qualquer momento e sempre que necessário, procurar um outro grupo que contribua melhor para a sua recuperação.

 

Como decorrência, fica estabelecido um processo de auto seleção contínua e flexível que amplia a condição do A.A. como movimento de ajuda mútua e serve como uma maneira informal e autodirigida de “comparação de tratamento” que está além do alcance de qualquer programa de tratamento profissional.

 

Em traços muito gerais, desenhamos uma visão macro da Irmandade de Alcoólicos Anônimos e agora vamos à dimensão micro do fenômeno. Para dar ênfase às dimensões da Irmandade, adotamos uma abordagem bipolar. Nos movemos da dimensão histórica, geográfica e social para o que ocorre no interior dos grupos de Alcoólicos Anônimos. Do cosmo para o átomo. Vamos entrar na matriz, no útero, vamos para o que gera, para o local onde as coisas acontecem tendo em vista que o grupo de A.A. é a mais importante unidade de atuação, de transformação e de recuperação da Irmandade.

 

Nos Grupos

 

Em realidade, a mudança de enfoque é mais radical ainda. Eu havia adotado a conduta de fazer relatos acerca de fatos reais, de coisas facilmente observáveis em função da sua materialidade. Agora, vamos para uma realidade inteiramente diferente em que a melhor maneira de iniciar a sua apresentação é ter em mente as palavras de Antoine de Saint-Exupery, em O Pequeno Príncipe: “É com o coração que vemos corretamente. O essencial é invisível aos olhos”.

 

1- Rituais de abertura.

 

Nos grupos, as reuniões se iniciam com os rituais de abertura, que separam o tempo destinado à reunião, do tempo livre. Assim, é feita a Oração da Sereni-dade e são lidos alguns trechos da literatura de A.A. que declaram a condição comum das pessoas ali presentes, o seu problema compartilhado, o alcoolismo. A separação dos tempos é importante, pois se passa para uma outra realidade, para uma outra dinâmica.

 

Cada reunião é um evento social único e nunca baseado no que aconteceu em alguma reunião prévia e nem há qualquer tipo de compromisso em relação a futuras reuniões. O que em uma reunião acontece é próprio daquela reunião. Os membros identificam-se naturalmente e o que importa é a espontaneidade e a necessidade de comunicar a experiência pessoal. A continuidade das reuniões fica por conta da repetição da agenda de reuniões, que usualmente permanece a mesma.

 

2- Eu sou um alcoólatra.

 

Os que usam a palavra, usualmente, iniciam os seus depoimentos dizendo: “eu sou um alcoólatra em recuperação e hoje não bebi pela graça do Poder Superior e à ajuda de vocês”. Assim, ao iniciar, reiteram uma parte do que é dito no ritual de abertura e reconhecem serem alcoólicos em recuperação. A admissão dá início à recuperação e faz parte do processo de superar a negação que o alcoólico na ativa tem em relação aos seus problemas com o álcool. A identificação pessoal faz com que o A.A. não necessite de critérios objetivos para fazer diagnósticos e o próprio reconhecimento da impotência diante do álcool não depende de métodos codificados de diagnóstico. Isso muda radicalmente a atitude mental que o alcoólatra tem do seu problema. Passa a aceitar a realidade e não continua a negá-la.

 

A condição de ser um alcoólico é tão básica que supera as diferenças individuais e sociais. É a identificação de iguais, que mutuamente reconhecem que são torturados pelo mesmo demônio, que dá suporte para a condição de igualdade entre os membros dos grupos. Por outro lado, os grupos não estão interessa-dos nas causas do alcoolismo e participar o programa de A.A. é uma realização conjunta, de iguais. A auto identificação dá fundamento à Irmandade de Alcoólicos Anônimos.

 

3- A recuperação é possível.

 

É possível parar de beber. O alcoólatra que chega ao A.A. encontra no grupo pessoas que sofreram as mesmas conseqüências do alcoolismo e que estão limpas e bem vestidas, que estão bem e alegres. O que sempre parecera ser impossível alcançar, parar de beber, é visto como sendo possível. Portanto, existe um caminho, uma saída para o problema. Surge a esperança, e ninguém pode viver sem ela.

 

4- Ser humano que tem valor.

 

Ao entrar em um grupo, ao ser bem recebido, o alcoólico tem a oportunidade de falar e, mais ainda, de ser ouvido e não apenas escutado. Recebe abraços e cumprimentos que fazem o recém- chegado crescer na sua auto estima. São tratados como seres humanos, como pessoas que têm valor e que apenas são portadores de uma doença que, embora não seja possível curar, podem deter, superar. O recém chegado ouve que é a pessoas mais importante daquela reunião. E não é hipocrisia, pois que ele lembra aos que estão sóbrios e bem, que a doença continua existindo e que é daquela maneira deplorável que irão ficar se pensarem que já podem beber.

 

5- Isolamento e comunicação.

 

O isolamento é característico do alcoólico na ativa. Ele perde a comunicação com os que estão à sua volta em função do seu alcoolismo e da perda de referenciais, valores e prioridades. Mas o ser humano é um ser social que se realiza e cresce no convívio com os outros. A troca de interiores os enriquece mutuamente e por isso a comunicação é indispensável à vida de todos os seres humanos e, em especial, dos alcoólicos.

 

Em A.A., o alcoólico encontra espaço para reiniciar a comunicação com outros seres humanos porque encontra um silêncio respeitoso, uma atenção que transmite ao alcoólico que faz o seu depoimento a mensagem de que ele tem valor e que por isso é ouvido atentamente. A volta da comunicação abre o espaço indispensável para um enorme progresso nas relações com os outros, para uma mudança de comportamento.

 

6- Pertencer. Ter raízes.

 

Todas as pessoas necessitam de um certo grau de integração com o ambiente social em que vivem, têm necessidade de pertencer. Participar e realizar-se como ser humano no convívio com os outros é essencial para a estabilidade emocional. Mas o alcoólico vai perdendo raízes ao longo da sua vida. Frequentemente, não mais pertence a um clube, não freqüenta mais um curso e, muitas vezes, perde o emprego e o convívio com familiares. Perde amigos. Ou seja, em graus variáveis, ocorrem perdas significativas e as raízes vão sendo perdidas ao longo do tempo e vemos, com freqüência, que o que resta são os amigos de bar e os mendigos moradores de rua. O sofrimento é atroz. No entanto, ocorre que as portas dos grupos de A.A. são muitas e estão abertas, sem qualquer restrição, para todos os que queiram parar de beber. Também estão abertos os braços e os corações dos membros dos grupos para todos os que desejarem parar de beber. Nos grupos, ouve-se dizer que se o seu proble-ma é parar de beber o problema e nosso, dos membros do grupo e do próprio, e se o seu problema é beber, o problema é seu. Se decidem pertencer a um grupo, começam a pertencer, a ter raízes. É como se ligassem a sua tomada na fonte de energia do mundo.

 

7- Não julgamento, cada um fala de si.

 

Cada um oferece, ao depor, as suas experiências pessoais dentro de um ambiente em que não se faz qualquer comentário em relação a depoimentos anteriormente realizados e nem mesmo ao que está em curso. Não se fazem julgamentos.  Nenhum depoimento pode ser interrompido e, por isso, são criadas condições para que sejam feitos livremente. Acresce que, como todos os presentes tiveram experiências semelhantes e, das experiências que não tiveram, já ouviram falar em depoimentos feitos por outros alcoólicos, não existe qualquer reação visível por parte dos companheiros do grupo que escutam em silêncio respeitoso. Eles não se escandalizam, não há uma reação do tipo: como você foi capaz de? Essa atitude por parte do grupo é fundamental para que aquele que faz o depoimento possa abrir irrestritamente o seu coração. A autonomia de quem faz o depoimento é irrestrita e não existe a necessidade de ser aprovado pelo grupo. Ninguém pergunta sequer de onde o depoente veio e para onde está indo. Não há retorno ao depoimento que um membro do grupo faz.

 

8- Anonimato.

 

É fundamental para preservar o alcoólico em relação a preconceitos e ao conteúdo do seu depoimento. Um outro aspecto a ser considerado é que o anonimato concorre para tornar seguro o ambiente do grupo, em que as guardas podem ser baixadas, também as defesas naturais, e para que o membro do grupo possa a fazer o seu depoimento com verdade, o único que, e só dessa maneira, contribui para a recuperação. Isso representa uma radical mudança de atitude em relação ao tempo do alcoolismo ativo em que predominava a manipulação, a racionalização e a negação. Um outro aspecto de igual importância é que o anonimato previne o crescimento do ego. Estando sóbrio e tendo a seu favor a grande conquista, poderia ocorrer o aparecimento dos “que entendem de alcoolismo e de como se sai dele”, tentados a grandes exibições. Mas a humildade é a primeira condição para se consolidar vitória tão importante, para alcançar a serenidade e aí o anonimato é o compromisso salvador que leva a aceitar que os “princípios estão acima das personalidades”, pensamento freqüentemente repetido nas salas de A.A.. O anonimato é uma conquista e leva a profunda e radical mudança de comportamento.

 

9- Troca de experiências, forças e esperanças.

 

O ambiente do grupo, com as características já descritas, torna-se o local próprio para a troca de experiências, para o desenvolvimento de atitudes corajosas e para uma abertura para um futuro melhor, para ter esperança.

 

10- Ser e ter.

 

A.A. fez opção pela pobreza. Na Irmandade, se quer ser e não ter. Como não há limites para a vontade de possuir mais, o desejo de ter mais leva à ganância, ao egoísmo e ao individualismo. A cobiça leva ao antagonismo. Em A.A. a atenção não está voltada para ter, mas para o alcoólico que ainda sofre. Não está voltada para as coisas, mas para as pessoas, para o ser humano. Em A.A. a busca é por ser digno, ser honesto, ser fraterno, ser bons e amáveis companheiros, ser bons amigos, ser bons pais, ser bons filhos, ser e ser gente.

 

Os comportamentos, as maneiras de sentir, pensar e agir, na sobriedade, são profundamente diferentes daquelas que predominavam quando estavam no alcoolismo ativo. Há uma diferença sensível entre as pessoas que vivem no modo ter e as pessoas que vivem no modo ser, que induz a um relacionamento amoroso e pacífico. Ser implica em atividade, renovação, criatividade. É mudança, é crescimento. É vida, é processo que leva a uma mudança interior e, conseqüentemente, a uma profunda mudança de comportamento.

 

11- O alcoólico e não o alcoolismo.

 

Toda a Irmandade está voltada para o alcoólico e por isso não faz estatísticas e nem se dedica a estudar o alcoolismo. O que interessa é o ser humano que sofre de uma condição de alto poder de destruição, que é o alcoolismo. Ela também não faz pesquisa de qualquer tipo, pois isso poderia implicar em submeter os seus membros a processo de estudo e pesquisa. Em A.A. ninguém é submetido a nada. A liberdade pessoal é respeitada, no máximo da sua amplitude.

 

12- Identifica.

 

Não são consideradas as diferenças sociais, categorias ou estratos. A.A. não iguala, irmana. Não aceita rótulos.

 

Estando voltados para o seu problema comum, que não é pequeno, resulta que os membros de A.A. convivem num ambiente formado por pessoas que se identificam profundamente, o que faz empalidecer as diferenças sociais, dilui as categorias e os estratos existentes na sociedade. Resulta que todos ficam irmanados e não são considerados os rótulos, que reduzem a dimensão humana. Mas nesse mesmo ambiente, cada um mantém, preserva, a sua individualidade. Não importa o papel que cada um tenha na sociedade. Freqüentemente, os membros não sabem nada a esse respeito. O que importa é o problema comum, o alcoolismo.

 

13- Inclui, não exclui.

 

Não há qualquer formalidade para o ingresso de um alcoólico em A.A.. Nada é exigido como condição de entrada. Nem mesmo que esteja limpo e sóbrio. Nem o nome, nem de onde veio, nem o que fez e o que faz, nem para onde vai. Nada, simplesmente.

 

A decisão de incluir sem restrições exige muita coragem e também que os membros dos grupos estejam bem estruturados, que se mantenham num crescimento contínuo por meio da prática do programa para que possam estar em condições de receber pessoas profundamente desequilibradas, desestruturadas, doentes. Como não há dogmas em A.A., nada há que impor, sendo que o programa de recuperação é apenas sugerido ao recém-chegado. Não conheço nenhum outro agrupamento humano com estas características.

 

14- Não há código disciplinar.

 

Ninguém pode ser punido ou excluído, a despeito do que fale ou faça. Esse fato se constitui num desafio assombroso e exige um alto grau de aceitação, de compreensão, de tolerância e de amor ao próximo. Não conheço nada igual sobre a terra. É o Deus amoroso que reina e não o que julga e castiga. Não há juízo e, muito menos, juízo final.

 

15- Evite o primeiro gole. Só por hoje.

 

Não seria possível fazer promessas e assumir compromissos para toda a vida. Seria pesado demais para qualquer pessoa e, especialmente, para os ingressantes. O objetivo é alcançado pouco a pouco, um dia de cada vez. Como foi ensinado há milênios, “a cada dia bastam as suas tribulações”. Mais do que isso, só é preciso estar atento ao primeiro gole, nada mais.

 

16- Direito de participação.

 

Como não há estratos e nem hierarquia, o direito de participação assegura que todos, indistintamente, possam participar das atividades, de todos os serviços necessários à manutenção do grupo e indispensáveis para manter as portas abertas, além da existência da própria Irmandade de Alcoólicos Anônimos como um todo, a nível mundial. Mas participar significa conviver, aceitar o próximo, harmonizar-se com as pessoas, aceitar objetivos e irmanar-se com os outros membros do grupo, com todos os que formam tão alargada forma de associação humana. Tudo isso leva a uma profunda mudança comportamental, indispensável à integração na grande comunidade dos humanos.

 

17- Serviço, instrumentalização do amor ao próximo.

 

Irmanados em torno de objetivos comuns e tendo como objetivo estar em condições de estender a mão aos que ainda sofrem nas garras do alcoolismo, o serviço concorre para uma mudança radical de comportamento. O alcoólico sai de si, deixa de ser o centro, esquece momentaneamente os seus problemas para se dedicar ao próximo. O ideal superior, livremente escolhido e assumido, de manter as portas do grupo abertas para receber os que sofrem do alcoolismo e para levar a eles a mensagem de A.A. faz com que os membros do grupo cooperem entre si, e isso leva ao desenvolvimento de um clima de entendimento e harmonia, do que resulta que todos se tornam mais sociáveis. Era o que não acontecia nos tempos de ativa.

 

Ao cooperar, aceita o próximo, valoriza-o e aprende a amar o irmão. Caminha para a solidariedade. Ocorre, em decorrência, uma profunda modificação nos interesses e na conduta de cada um dos membros do grupo, uma notável mudança comportamental.

 

18- Responsabilidade auto atribuída.

 

Assumir o ideal maior de manter o grupo, de levar a mensagem a quem ainda sofre e de manter as portas abertas para receber o alcoólico que chega coloca a Irmandade de A.A. em ação, gera o imperativo de responder às necessidades, conduz à responsabilidade. Todos assumem os serviços por se entenderem responsáveis e, daí, resulta a fundamental auto atribuição de responsabilidade. Se ela fosse, de algum modo, imposta, poderia ser rejeitada ou não cumprida. Mas, como é auto atribuída, é plenamente aceita e os serviços são realizados, usualmente, à perfeição.

 

Ao se tornar responsável, o membro do grupo, dentro da possibilidade de cada um e de limites tradicionalmente aceitos, contribui com os meios materiais necessários para manter o grupo, que passa a ser o centro das decisões ao não depender de ajuda de fora, além de permitir que o A.A. permaneça fiel aos seus objetivos e imune a influências externas. Isso dá a todos os seus mem-bros a sensação de poder, de ser capaz, o que concorre para aumentar a auto estima. O ato da doação torna-se um exercício, um ato de poder feito com as próprias mãos, por um ato de vontade. Atua como se fosse uma “ginástica” de responsabilidade que fortalece a vontade e muda o comportamento ao longo do tempo. E responsabilidade era o que o alcoólico na ativa não tinha. Era freqüentemente acusado de ser um irresponsável por todos à sua volta.

 

19- Conhece-te a ti mesmo.

 

Quase todos os passos do programa de recuperação estão voltados para o autoconhecimento. Ao estudar e praticar os passos, o alcoólico evolui, ao longo da jornada, em direção ao seu interior, a si mesmo, o que lhe dá valor e grandeza espiritual, além de possibilitar a melhoria da única parte do mundo que depende só dele, que é ele mesmo.

 

Reconhece a sua individualidade, entende que é um ser único na Criação. Caminha na conquista de si mesmo. Encontra sentido para a sua vida. Percebe que é um fim em si mesmo e que tem espírito próprio. Ganha plena consciên-cia de si mesmo, se aceita inteiramente. Caminha para a solução dos seus mais recônditos problemas.

 

20- Solução das culpas e das vergonhas. Compreensão e não julgamento.

 

Ao ficar e permanecer sóbrio, o alcoólico tem que enfrentar a sua realidade, a verdade, as conseqüências do seu alcoolismo, lidar com o fato de se sentir incapaz, impotente, inadequado. Culpas e vergonhas surgem de forma contínua. Mas a freqüência aos grupos possibilita desfrutar de um ambiente em que as pessoas compreendem e não julgam, contribuindo isso para a solução, de mo-do eficaz, dos problemas relacionados às culpas e às vergonhas.

 

Normalmente, é difícil encontrar quem seja capaz de compreender, mas os alcoólicos têm essa necessidade satisfeita à saciedade. Para a solução das culpas e das vergonhas, o alcoólico encontra, em determinados passos do programa, a solução ideal para esse tipo de problemas, sendo que a prática dos passos é facilitada pela solidariedade, pela compreensão e pelo não julgamento por parte dos membros do grupo.

 

21- Ambiente alegre de pessoas felizes.

 

Os sofrimentos das pessoas que padecem do alcoolismo são intensos e atingem diversas dimensões do ser humano: física, mental, espiritual, econômica, relacional, etc e seria previsível encontrar nos grupos de A.A. um clima de intensa dor, clima pesado de tragédia humana. Mas não é assim. As pessoas estão bem, freqüentemente alegres, limpas, vestidas com dignidade e em ambiente de cordialidade.

 

Isto é muito importante porque, para ouvir os depoimentos, é preciso estar aberto, aceitar sentir dor. Usualmente as pessoas evitam desconfortos, evitam os ambientes pesados criados pela dor, mas desse modo não desenvolvem a compaixão que os enriquece. O médico aceita a dor dos seus pacientes, embora, pela freqüência com que isto acontece e pela sua intensidade, tenha que desenvolver atitudes de proteção pessoal.

 

As pessoas em A.A. são vitoriosas. Vivem a realidade de que não são pessoas que “não podem beber” mas que são pessoas que “podem não beber” e isso faz toda a diferença. São pessoas que não estão sendo levadas sabe-se lá para onde por um furacão, mas que começam a ter poder sobre si mesmas, começam a comandar os seus barcos e a ser donos dos seus destinos. Sabem que não podem tudo, mas que podem algumas coisas. Enquanto que no passado eram muitas as perdas, agora são muitas as vitórias. Mas seria previsível encontrar alguma tristeza, pelo menos. No entanto, o sentimento predominante é outro.

 

As pessoas que estão no grupo têm consciência profunda do sofrimento relatado por quem faz o seu depoimento e o escutam atentamente, em silêncio, e desejando ajudar o companheiro no sentido de aliviar o seu sofrimento. Acontece que este sentimento se chama compaixão, é denso e se desenvolve na sua plenitude no ambiente de silêncio respeitoso do grupo. É a resposta espontânea daquele que está aberto para quem faz o depoimento. Nem a própria dor pesa tanto quanto a que se sente com alguém e por alguém. Essa dor é amplificada, posteriormente, pelas lembranças que surgem do depoimento feito; são ecos que reforçam a compaixão que, por seu lado, elevam a dimen-são humana de quem ouve o depoimento e na compaixão despertam para o amor ao próximo, para os sentimentos de fraternidade e de solidariedade. Mas compaixão não é o mesmo que tristeza, não é o mesmo que ter pena. É muito mais que isso. As pessoas se sentem bem nos grupos, são felizes no convívio com iguais.

 

22- Solidariedade e crise.

 

Um poderoso sentimento de solidariedade está presente nos grupos,que é estimulado por situações de crise. Desastres ambientais com vítimas despertam solidariedade a nível mundial. Genocídios, como recentemente vimos praticados numa escola russa, despertaram solidariedade a nível mundial. Na sala de espera de uma UTI identificamos o sentimento de solidariedade entre os que esperam notícias de melhora.

 

A doença do alcoolismo é incurável, ou seja, a crise permanece, é constante. Este é o lado bom porque a crise permanece e também a correspondente resposta, que é a solidariedade.

 

23- Novo ciclo de amizades.

 

Este é mais um aspecto positivo da Irmandade. Todo um conjunto de novos relacionamentos é oferecido aos que chegam aos grupos. Funciona como se fosse um escudo de proteção formado por pessoas vitoriosas, felizes, equilibradas, de bem consigo e com a vida, que se aceitam e aceitam os outros e que admitem estar dentro de um processo de evolução, de crescimento na sua humanidade. De pessoas que aprofundam o seu nível de consciência e que se mantêm no processo.

 

24- Alicerce e construção.

 

A sobriedade é indispensável para que haja uma evolução favorável no quadro do alcoolismo. Ela é o alicerce, mas não se faz um alicerce para nada. Em cima da sobriedade, vem a serenidade, a evolução, que leva à construção de um novo ser a partir de uma profunda mudança, uma mudança no “self” sem o que nada melhora de modo significativo e duradouro. E esta evolução é oferecida aos que estão nos grupos por meio do programa de recuperação, magnífico programa, também adotado por um grande número de outras formas de as-sociação humanas.  

 

 

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